Pensar, conhecer e realizar-Estratégias de significação de si - Jorge Luiz da Cunha
19 Fevereiro, 2018
Escrever histórias, narrar e narrar-se são estratégias humanas de significação da relação com a realidade vivida e imaginada. Em memórias, diários e cartas, com vasto conteúdo biográfico e autobiográfico, encontram-se inúmeras referências a construção humana de si mesmo como um outro para convencer aos outros e também a si mesmo de sua existência e significado. Os efeitos desta postura metodológica opõem-se de forma evidente ao influxo cartesiano, na pesquisa, no ensino e na cultura e ultrapassam a eventual deficiência interpretativa das narrativas, não raro, associadas somente a técnicas ou métodos, como a semiótica, a análise de conteúdo, a análise do discurso.
Como resultado, percebe-se importante e complexa relação das narrativas biográficas e autobiográficas com os contextos da realidade, identificando a inscrição da existência pessoal significada numa narrativa do mundo que dá forma e sentido a história de cada um.
Assim interpretada e apropriada a narrativa autobiográfica apresenta-se como importante possibilidade metodológica para a educação.
Recuperando a memória e os usos das narrativas biográficas e autobiográficas desde a antiguidade até o presente, na civilização ocidental, depreende-se que enquanto humanos vivemos a experiência sensível da realidade sempre a partir de perspectivas concretas, matérias, subjetivas, imaginativas e reflexivas. A abordagem desta temática a partir de memórias de viajantes, diários e cartas de imigrantes estimula a pesquisa e a reflexão na afirmação de que sempre nos construímos individual e coletivamente a partir de uma determinada perspectiva, criando, anunciando, ressaltando, omitindo ou negando certos aspectos, pois nossa história contada é influenciada, senão determinada, por nossos interesses particulares e seus encontros com a realidade existencial.
As concepções modernas, de modo especial das ciências sociais e humanas, enfatizam as realidades exteriores e localizam a interpretação da existência humana, individual ou coletiva, em bases objetivas.
Um grande pensador da contemporaneidade, James Hillman, em um de seus mais reconhecidos livros, Cidade & Alma (São Paulo: Studio Nobel, 1993, páginas 12-.15), afirma:
- "O ?lá fora? determina largamente o ?aqui dentro?, No entanto, essas determinantes sociais permanecem condições externas, econômicas, culturais e sociais. [...] a realidade é de dois tipos: primeiro, o mundo significa a totalidade dos objetos materiais existentes ou a soma das condições do mundo exterior. A realidade é pública, objetiva, social e, normalmente, física; segundo, existe uma realidade psíquica não avaliada em espaço - o reino da experiência particular, que é interior, desejosa, imaginativa. [...] a divisão é realmente preocupante. Isso significa que a realidade psíquica não foi concebida para ser pública, objetiva ou física, enquanto a realidade exterior, a soma dos objetos e das condições materiais existentes, foi concebida para ser completamente destituída de alma. Assim como a alma existe sem mundo, o mundo também existe sem alma. [...] Essa visão não apenas mata as coisas por vê-las como mortas; ela nos aprisiona naquele pequeno e apertado cubículo do ego."
Este recorte possibilita uma interpretação que, considerando a proveniência do narrado, recupera o vigor originário do pensamento humano contextualizado na realidade concreta e presente e ancorado na consciência de si. A inovação possível, e o futuro desejável, necessita do risco e da coragem de imaginar, sentir, interpretar, significar, significar-se e agir. Senão não há possibilidade de futuro!
E mais, creio que a recuperação da memória, disto que podemos chamar de genealogia do papel das narrativas biográficas e autobiográficas, pode nos levar a um campo investigativo precioso que nos permitirá construir as bases da crítica e da superação da identidade - estratégia tradicionalmente conservadora da modernidade atual - e alcançar uma nova instância, não apenas de compreensão e conceituação do humano, mas de sobrevivência digna a partir de estratégias educativas (escolares e não escolares) ancoradas em práticas corajosas de inovação.